De caçador a pet: o comportamento de cães sob um olhar evolutivo

De caçador a pet o comportamento de cães sob um olhar evolutivo
mar 9, 2020

Olá, pessoal! Sou Fernanda, humana da Lelé e da Poppys do Instagram @leleepoppys, aluna da Academia da Matilha e uma bióloga muito curiosa a respeito do processo evolutivo no comportamento dos cães. E hoje, gostaria de contar para vocês sobre algumas das características comportamentais que diferenciam os cães de lobos.

Variação genética sob o ponto de vista evolutivo

comportamento de cães

O período e localização em que a relação dos cães com os humanos se iniciou ainda é bastante discutido, mas a maioria dos cientistas concordam que deve ter ocorrido no final do Pleistoceno (pleistoceno é o período da história da terra compreendido entre 2,5 milhões e 11,7 mil anos atrás), na região da Eurásia. Assim, os cães domésticos e o atual lobo cinza tiveram um ancestral comum há pelo menos 15 mil anos. 

Pode parecer muito tempo, mas, sob uma perspectiva evolutiva, é um período muito curto para grandes mudanças genéticas. Por isso, não é surpresa que o conteúdo genético entre cães e lobos seja muito parecido. Apesar da estrutura genética muito similar, a forma como esses genes atuam variam, e podemos perceber isso nas diferenças que existem entre o comportamento e morfologia de cães e lobos.

Processo de domesticação

Processo de domesticação

Essas diferenças no comportamento, forma do focinho, cor, tamanho, são resultados das preferências dos humanos ao longa de todo o período de convivência entre as duas espécies. Existem duas hipóteses sobre como se iniciou a relação entre cães e humanos, e o processo de domesticação:

  • Uma diz que os humanos adotaram lobos jovens.
  • A outra, mais aceita, diz que lobos mais dóceis começaram a viver próximos aos vilarejos humanos em busca de comida, e por defender a comida, acabava defendendo também os humanos que viviam ali.

Dessa forma, a domesticação se deu por um processo conhecido na ecologia como comensalismo, em que as duas partes envolvidas se beneficiam da relação: os canídeos tinham alimento e os humanos proteção.

Alimentação: comportamento de cães e lobos sob o ponto de vista evolutivo

Alimentação: comportamento de cães e lobos sob o ponto de vista evolutivo

A maioria dos lobos são caçadores e dependem da caça em grupo. Essa atividade possui baixa previsibilidade, pois a localização e abundância das presas variam ao longo do ano. Além disso, as presas reagem, podendo ferir os caçadores, o que faz com que seja uma atividade perigosa. Também requer muita persistência, pois a taxa de sucesso é geralmente baixa.

Os cães são conhecidos como catadores, e a alimentação depende diretamente da atividade humana. Os lobos ancestrais que originaram os cães buscavam os restos de comida dos humanos, comportamento que foi reforçado pelo processo de domesticação. A catação ainda é observada em cães abandonados, que apanham restos de alimento dos lixos humanos, e em pets, que catam os alimentos que são fornecidos pelos tutores.

Dessa forma, a sobrevivência daqueles lobos catadores ancestrais foi aumentada pela intervenção humana. Além disso, ao contrário da caça, que em lobos depende de um grupo grande e saudável, a catação permitia que indivíduos solitários pudessem se aproximar dos assentamentos humanos, onde conseguir comida era mais seguro (os restos não lutam) e previsível (um monte de humanos juntos são bem fáceis de encontrar) do que caçar.

A intervenção humana também alterou o metabolismo do cão, pós processo de domesticação. Como a alimentação humana inclui bastante amido (arroz, mandioca, milho, batata, trigo etc.), lobos (e provavelmente os lobos ancestrais catadores) não possuem mecanismos de digestão de amiláceos, que estão presente nos cães atuais. 

>> Veja também o post sobre mushing, cães puxadores de trenó!

Diferenças na organização social de cães e lobos

Diferenças na organização social de cães e lobos

As matilhas de lobos são formadas, geralmente, por um casal e suas ninhadas. Mas em grupos muito grandes, podem aceitar membros não aparentados. Os lobos são bastante dependentes de uma matilha coesa e funcional. Por exemplo, a criação dos filhotes é compartilhada por todos os membros da matilha. E envolve desde regurgitar alimento para os filhotes e para a mãe, que enquanto está amamentando não sai para caçar, além de proteger os pequeninos. Os filhotes também aprendem a caçar com a ajuda da matilha, começando bem jovens, por volta dos 7 ou 8 meses de idade. 

Já os cães normalmente não vivem em matilhas. Ocasionalmente podem formar grupos, quando são abandonados, mas essas matilhas são pequenas e pouco coesas. Mesmo nesses pequenos grupos, ou para os cães de modo geral, o cuidado dos filhotes é tarefa somente da mãe, que podem abandonar os filhotes antes dos sete meses. Isso porque os cães aprenderam a viver em um ambiente humano, formando vínculos de ligação e apego conosco, e, por instinto, esperam que os humanos cumpram parte das funções de uma matilha, como proteção dos filhotes.

Essa relação de ligação entre cão e humano deu origem a um sistema complexo de comunicação entre nós, que não existe com os lobos. Já que em lobos a comunicação só ocorre entre membros da matilha.

Apesar do convívio com humanos, cães em geral são menos tolerantes, principalmente na proximidade do alimento, e tendem a evitar o conflito mantendo distância ou sendo agressivos. Já lobos são mais cooperativos e podem negociar com membros da matilha em situações de conflito ou para partilhar o alimento.

Capacidade cognitiva de cães e lobos

Cães e lobos demonstram grande diferenças comportamentais para resolver problemas. Os lobos são bem mais persistentes e focados na atividade. Apesar de serem mais cautelosos, e possuem mais sucesso para resolver um problema do que cães. Já os cães, pelo longo tempo de convivência com ambientes mais humanizados, normalmente têm menos medo de situações e objetos novos, mas também tem menos sucesso para resolver problemas. Isso porque contam com o cérebro dos humanos para apresentar soluções e utilizam comportamentos relacionados à ligação cão-humano para expressar necessidade ou pedir ajuda. Não é que cães não sejam inteligentes, mas aprenderam a usar a inteligência dos humanos para resolver seus problemas (por isso um cão abandonado é uma grande maldade!).

A seleção humana de traços comportamentais desejáveis teve grande influência no processo de domesticação. No entanto, nem todas as mudanças que observamos hoje nos cães, com relação ao seu ancestral lobo-catador, foram escolhidas pelos humanos. A capacidade dos cães de usar nossa inteligência e de metabolizar o amido são exemplos de mudanças não escolhidas, mas que ocorreram mesmo assim. Isso aumenta a nossa responsabilidade como tutores quando escolhemos um pet para acolher em nossa casa. Afinal, estamos falando de um convívio de mais de 15 mil anos! Você já havia parado para pensar como essa relação hoje tão comum havia começado? Se surpreendeu com alguma coisa? Leu ou ouviu algo diferente em outro lugar?

Fernanda Franco

Fernanda Franco

Autor

Humana de estimação da Lelé e da Poppys do @leleepoppys. Bióloga doutora em genética e biologia molecular, apaixonada por processos evolutivos e padrões comportamentais caninos. Aqui “traduzo” a literatura científica em linguagem acessível e conto a minha experiência como mãe de pet.

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Nossas Escritoras

Bruna Flores Vaz

Sou a Bruna Mamãe do Chop (@chop_chow) e estudante de Medicina! Estou a 3 anos no Mundo do Instagram Pet e gosto muito de todo esse universo de influenciador, onde compartilho minhas experiências e dicas da vida com um Chow Chow!

Carolina Falaschi

Relações Públicas apaixonada por animais. Desde o meu primeiro emprego, eles sempre estiveram presentes. Estou focada no mercado pet desde 2016, quando fui fazer curso de Auxiliar Veterinário e depois fiz apenas um ano de Medicina Veterinária. Aqui na Matilha Brasil, estou unindo a paixão por comunicação e animais, em publicações mensais que unem conhecimento técnico e minha experiência como tutora do @arthur.pastoralemao.

Fernanda Franco

Bióloga doutora em Genética e Biologia Molecular e apaixonada por cães. Desde a faculdade sempre tive interesse muito grande nas relações evolutivas e nos padrões comportamentais dos animais. E mesmo não sendo esse o caminho trilhado profissionalmente, sempre foi um hobbie estudar um pouco mais sobre isso.
Com a chegada da Lelé e da Poppys (@leleepoppys) esse interesse aumentou buscando sempre o bem-estar das duas.

Fê Rabaglio

Designer gráfico especialista em Comunicação em Redes Sociais, atuo na área de produção de conteúdo e gestão estratégica de redes sociais desde 2011.
Já passei pelos mercados de Turismo e Intercâmbio, mas o mercado pet foi uma grata surpresa que os meus cães, os Ursinhos Chow Chow, me trouxeram, cheio de peculiaridades que amo conhecer e contribuir para o crescimento de marcas e pet criadores de conteúdo.!

Navegue pelos Posts